Enganos culturais
Enganos culturais
“As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem"
Sermão da Sexagésima - Pe. Antônio Vieira
Os enganos são frequentes quando miramos as estrelas. Elas nos induzem a pensar o que somos, mas não somos, pois querer ser - nos limites infalíveis - é sublime, mas julgar ser é ridículo, já afirmava o filosofo espanhol Ortega. É um pensar de um ser humano desvinculado dos limites e amarras do mundo, que vive uma psicose do super-homem, um Skandolus sem empatia e solidariedade, como dizia o Nazareno. Suas verdades devem prevalecer, não como uma mera opinião, mas por força da violenta imposição, ora por uma oratória recheada de adjetivos ferinos, ora por uma sentença judicial de um juiz super-filósofo .
É o velho ego pregando peças e enganos. E que o acaso me livre dos egos frágeis, pois dos fortes me livro eu. Por trás de um ego supostamente forte, narcisista, controlador e autoritário, está um ego em frangalhos, do estilo “mamãe me socorra”, que busca notoriedade pela violência ou malandragem, e de um jeito ou de outro, pelo simplória maneira de se expressar.
Desculpem o desabafo, caro leitor, pois o que vou escrever a seguir, pouco tem a ver com o que escrevi em linhas acima - mas não posso inibir associações que o leitor possa fazer, pois acredito que um texto só é texto quando reescrito pela interpretação do leitor.
Fico perplexo com o relativismo cultural que campeia em terra brasilis, mas de perto em nossa terrinha dos caranguejos, esses típicos bichinhos que, na planície do caju, vivem em uma lata sempre aberta, pois quando um tenta escalar as paredes lisas da lata, os outros puxam para baixo. Assim, nesse ambiente latal, formam-se grupos culturais recheados de amigos e cúmplices, e toda critica e dissidência é considerada uma grande heresia, oriunda de pessoas maldosas e invejosas. Enquanto isso, as verbas estatais são canalizadas para esses grupos de grandes talentos, quase todos entronados em academias literárias existentes ou em futuras a serem criadas. Egos satisfeitos, e em muitos casos, bolsos recheados. Línguas com salivas maldosas chegam a afirmar que existem mais academias do que escritores, entretanto isso não é problema, basta rechea-las com políticos, médicos, supostos juristas e escritores “meia sola”, com quase nenhuma intimidade com as palavras, refugiando-se em uma suposta arte popular, segundo eles, a mais autentica expressão artística. Já outros mais vaidosos querem sofisticar seus escritos com floreios metafóricos mal colocados que me fazem lembrar a mistura de água com óleo.
Entretanto, nada disso importa para eles, o que importa são os aplausos dos seus pares, elogios cruzados e uma grande muralha protetora. Há de se indagar: desse mato sai lebre? Desconfio que quando as pessoas se aplaudem, contentes com as baboseiras que escrevem e imunes às críticas, a mediocridade se instaura como norma maior, pois a arte ou qualquer outra manifestação do conhecimento só existe convivendo com o inconformismo dos seus produtores, sempre ansiando por melhoras nas suas produções. Ser feliz com o que faz, mas sempre insatisfeitos com os resultados, eis a fórmula! Trabalho e muito trabalho, entendendo, como declarava Beethoven, que a inspiração era apenas dez porcento das suas criações e o restante era a absorção do conhecimento, a famosa transpiração. Dizia Albert Einstein em tom jacoso que “o único lugar que o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário”, ou, segundo alguns, nos grupos culturais sergipanos.
Uma escrita para os leitores é como uma pintura onde bailam as cores, cintilam os olhos em busca de perspectivas e seus pontos de fugas, disparam os tambores coronários tocados pela emoção e os conteúdos, pois como dizia Gustave Flaubert: “A palavra humana é como um instrumento enguiçado em que tocamos melodias para fazer dançar os ossos, quando queríamos comover as estrelas.” E como podemos comover as estrelas? Desconfio que só poderemos comove-las, na justa medida que saibamos ler dos talentosos escritores, saboreando as texturas das palavras, ouvindo as suas sonoridades, com as pausas das virgulas e os silêncios temporários dos pontos finais, e com isso, teremos um manancial de tesouros a serem reescrito com novas perspectivas e a inventiva de novos palavras, formando os nossos parágrafos-DNA. Do nada e da simploriedade do nada, só sai nada ou menos que nada.
Muitos supostos escritores sem algum talento, ou quando o tem são preguiçosos, refugiam-se na famosa arte popular ou na escrita dos livros para crianças, como essa modalidade fosse uma manifestação mais tolerante aos erros. Ao contrário! É uma modalidade que requer muito talento, pois é uma escrita por camadas interpretativas - aliás toda grande obra para merecer esse nome deve ser assim -, de acordo o fantástico conselho do Pe. Antônio Vieira e a observação profunda de T. S. Eliot que “a poesia genuína é capaz de comunicar antes mesmo de ser entendida”. Assim, ao ler os grandes autores da literatura infantil, o grande poeta Pessoa exclamou: “Nenhum livro para crianças deve ser escrito para crianças.”
Outro grande erro e refúgio para a ausência de talento é a famosa arte popular. Longe de mim ser contra as manifestações populares, pois as acho uma bela fonte de sabedoria popular, entretanto, coloca-las em um alto patamar artístico é um grande erro. Certos escritores pensam que se identificando com a arte popular lhes dão maior licenciosidade poética, podendo escrever livremente, afinal o popular, mesmo sem muitas preocupações com as palavras, é vivenciamento da realidade de um povo. Nada mais falso! Algum escritor popular ou cordelista, com suas rimas fácies e cotidianas conseguiu retratar com densidade e poeticamente, a realidade do Sertão como fez os intelectuais urbanos, Humberto Texeira e Zé Dantas, nas músicas de Luiz Gonzaga? Algum escritor popular de escrita fácil retratou a realidade linda e dramática do Nordeste agrário como fizeram o intelectual comunista Graciliano Ramos; o diplomata Guimarães Rosa, e tanto outros? Aqui em nossa terrinha existe na atualidade algum escritor que se rivalize com Francisco Dantas? No entanto, para o grupelho que domina politicamente a Academia Sergipana de Letras, o Sr. Dantas sempre esteve aquém dos grandes escritores que povoam a referida academia. Na minha opinião, ele é um sortudo, pois, com raríssimas exceções, estaria convivendo com a mediocridade, e a mediocridade é um vírus mais contagiante que a covid.
Gente, vamos colocar as coisas em seus devidos lugares. Vamos separar o joio do trigo. “A inspiração existe, mas ela tem que nos encontrar trabalhando”, disse certa vez Pablo Picasso. Um trabalho que absorve conhecimento, que vá permitir a intuição e o talento brotarem em solo fértil. Não basta ser um sertanejo ou um índio para merecer uma cadeira em uma academia literária séria. Se isso acontece é um desprestigio ao talento tão arduamente conquistado, por politicas populistas ancoradas em interesses inconfessáveis.
Ivan Bezerra de Sant’ Anna